A mitologia brasileira como você (quase) nunca viu. Provavelmente.

E lá vamos nós, com a terceira parte deste conto que é um dos meus favoritos pessoais. Quero saber a opinião de você, leitor: está gostando? Não está gostando? Não suporta mais ver essas histórias? Não se aguenta de curiosidade para saber o final? Deixe seu comentário! O feedback dos leitores é extremamente importante para nós!

Lembrando que estes contos, embora não tenham impacto direto sobre a saga principal (a respeito da qual eu falarei mais num futuro próximo, se Deus quiser!), se passam no mesmo universo dela; portanto, considerem-nos como uma espécie de aperitivo para a história de Febê e seus companheiros.

Lembrando também que se você perdeu as primeiras duas partes, pode conferi-las clicando aqui e aqui!

Boa leitura!

É um fato conhecido da natureza que não se pode vencer o sono[1]. Assim, a despeito de tudo, Pedro acabou derrotado pouco tempo depois. Foi acordar às nove e meia da manhã, com a bisavó chamando-o para tomar café.

Lá fora, o dia estava lindo. No céu, nem o menor sinal da tempestade da noite anterior. O chão, por outro lado, era uma grossa camada de barro e lama, na qual as galinhas se refestelavam.

Créditos da foto: www.ninha.bio.br

Créditos da foto: http://www.ninha.bio.br

Pedro correu até a varanda. Esperava encontrar, na lama, algum rastro do que vira na noite anterior. Tinha certeza de que era o Curupira. Mas não encontrou nada, nem mesmo uma pegada.

– Num adianta procurá.

O garoto deu um pulo e viu a bisavó olhando pra ele com uma cara de quem sabia perfeitamente o que estava se passando ali. Era a mesma cara que Verônica fazia quando ele aprontava alguma.

– V-Vó – gaguejou Pedro. – A senhora…

– Ele é muito esperto, o Curupira – interrompeu a velha. – Ele é capaz de imitar o rastro de quarquer animal que ele queira… E também de num deixá rastro nenhum.

– Como a senhora sabe que…

– Eu sei, fio – respondeu Vó Alda, pondo uma mão no ombro de Pedro. Eu apenas… sei.

***

Antes do almoço, todos resolveram fazer uma visita ao pomar, exceto Vó Alda, que tinha de preparar um remédio para uma vizinha. Naquela época do ano, as mangueiras estavam carregadas, e mangas eram a fruta preferida de Paloma.

– Tente não exagerar, senão depois você não almoça! – disse Beatriz.

Enquanto os demais iam na frente, o casal de namorados não tinha pressa. Ficaram pra trás, avançando quase em câmera lenta. De repente, Daniel estacou.

– O que foi? – perguntou Letícia, mas o rapaz fez sinal para que ficasse em silêncio.

Lentamente, pegou um pedaço de pau no chão e aproximou-se de um monte de folhas caídas. Os arbustos se agitaram, as folhas foram esmagadas. Um enorme lagarto saiu correndo de seu esconderijo e embrenhou-se entre as árvores. Daniel voltou com cara de decepção.

– Damn it. Daria um belo almoço. Tsc… acho que vai ter de ficar pra próxima.

***

Naquela tarde, Francisco, vizinho do sítio de Vó Alda, veio buscar o remédio encomendado. Aproveitando a presença do velho peão – já conhecido de longa data da família toda –, as crianças quiseram andar a cavalo. De início os pais estavam relutantes (“crianças, ele está com pressa, não pode brincar com vocês agora”), mas isso foi logo resolvido: os pequenos o acompanhariam até em casa, e depois ele os traria de volta. Todos aceitaram a sugestão.

Foram com Francisco as três crianças, junto com Daniel. Letícia não quis ir.

Pedro e Paloma montaram no Alazão, enquanto Ana Júlia foi com Daniel no lombo da Florisbela.

– Então – comentou Daniel – a Letícia disse que não tem mais tantos animais por estas bandas, verdade?

– Óia – respondeu Francisco – tê, até tem! Mas o duro é achá eles. Antigamente os bicho andava tudo por aí, sem medo. Mas hoje eles tão mais esperto. Mais escondido. É bem difícil de achá.

– Mas não é impossível. Quer dizer, se a pessoa souber direito onde procurar?

O outro ficou calado. As crianças estavam distraídas com a paisagem.

– Ora, vamos, seu Francisco! Eu sei que o senhor conhece bem essas matas, e deve saber onde os bichos se escondem!

O velho suspirou.

– Confia em mim, rapaz. Ocê num vai querer entrá na floresta pra caçar. Os bichos num têm só esconderijo… eles também têm um protetor.

“Oh my”, pensou Daniel. “Mais um com esse papo furado, não!”

– Olha só, seu Francisco – disse o rapaz antes que o velho pudesse dizer mais qualquer coisa – eu realmente agradeço a sua preocupação, mas digo que não tem com o que se preocupar. Eu sei me virar muito bem, sabe? Lá onde eu morava, meu pai sempre me levava pra caçar. Caça esportiva, mesmo, entende? Conheço os bichos, sempre respeitei a natureza, sei os limites. Tudo que eu quero é me divertir um pouco, relembrar essa época, mais nada. E sem querer faltar com o respeito ao senhor, eu vou entrar naquela mata, com ou sem a sua ajuda ou consentimento.

O silêncio só era interrompido pelo barulho dos cascos dos cavalos na estrada de terra e pelos risos das crianças. Depois de um tempo, Francisco falou:

– Tá bão. Já que eu num posso te segurá, pelo menos me deixa te ajudar de outro jeito.

– Como?

– Quando nóis chegá em casa eu te mostro.

E não disse mais nada o resto do caminho.

***

Na varanda do sítio, Vó Alda olhava umas revistas de crochê com a neta. Um pássaro pousou numa das vigas do teto e começou a gritar, acusando qualquer um que pensasse não ter sido visto[2].

– Que lindo! – exclamou Verônica. – Peraí, vó, eu vou buscar a câmera pra tirar uma foto!

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Enquanto a mais nova desaparecia dentro da casa, Vó Alda continuava a encarar o visitante. Qualquer um que não a conhecesse pensaria que a velha realmente entendia o que o bem-te-vi falava. E qualquer um que a conhecesse bem o bastante teria certeza disso.

***

– Aqui – disse o velho, entregando a Daniel um rolo de fumo e uma garrafa de cachaça, cheia pela metade.

– Obrigado – respondeu o rapaz – mas eu não fumo. E prefiro uma cerveja gelada.

– Num é procê – retrucou Francisco. – É pro Curupira.

– Oh. Claro.

– É uma oferenda. Quando ocê for entrá na mata, deixa a cachaça em algum lugar, perto da entrada. E se por acaso encontrá com o coisa-ruim, lhe dê o rolo de fumo. Os curupira num resiste a fumo e cachaça.

“Uau”, pensou Daniel. “Para um defensor do meio ambiente, esse tal curupira é um péssimo exemplo pras crianças!”

– Isso funciona mesmo? – perguntou, estendendo as mãos para aceitar os presentes.

– Pro meu pai sempre funcionô – respondeu Francisco. – Ele nunca se encontrou com o ser.

– Ah, claro… obrigado.

Saíram da casa. As crianças estavam brincando com os cachorros de seu Francisco. Pouco depois, saiu dona Tereza, que tinha acabado de administrar o remédio ao filho.

– Fala pra Vó Alda que nóis fica muito agradecido pelo remédio, viu?

– Pode deixar. Eu falo, sim.

– Bão. Intão, vamo?

– Mais ocê ainda vai vortá lá, bem? – estranhou Tereza.

– Uai, eu prometi que ia acompanhá as criança de vorta!

Todos preparados, tomaram o caminho inverso. Era noite quando Francisco voltou. O filho dormia tranquilamente, já bem recuperado da moléstia.

– Escuta, bem – susurrou Tereza. – Num me diga que aquele rapaz tá indo caçá na mata?

– É. Eu até que tentei fazê ele desistir, mas num teve jeito.

– Ai, bem, mas isso é perigoso! E se…

– Shh… num vamo ficá pensando nessas coisa. O finado meu pai sempre caçou nessas mata, e nunca aconteceu nada. O rapaz vai ficá bem.

– Ai, Deus te ouça, Chico… Deus te ouça!

***

Antes do jantar, todos foram para o terreiro. Ia começar o espetáculo.

A chuva da noite anterior parecia ter deixado o ar mais limpo ainda. Após um maravilhoso pôr-do-sol, todos se puseram a olhar para o céu. Uma a uma, estrelas e outros corpos celestes deixavam de lado a timidez e resolviam dar as caras.

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Era incrível pensar que aquele céu era o mesmo que se via na cidade grande. Por causa da poluição do ar e da iluminação das ruas, não se conseguia enxergar muito fundo na escuridão da noite. Ali, porém, longe de qualquer sinal de civilização, podia-se ver centenas, senão milhares de pontinhos brilhantes contrastando com o véu negro do céu. Com alguma sorte, era possível até mesmo visualizar algumas estrelas-cadentes, no momento em que incendiavam pelo atrito com a atmosfera e eram reduzidas a poeira espacial.

O único que não participava do show era Pedro. O pôr do sol trouxera de volta a lembrança da noite anterior, e o garoto preferiu ficar dentro de casa, lendo uma revista em quadrinhos. Mas aquela noite não trouxe nada de anormal.

De manhã, Paloma notou que o irmão estava com um comportamento estranho – mais estranho que de costume, segundo ela – e perguntou o que havia acontecido. No início ele tentou disfarçar, mas depois achou melhor contar à irmã e à prima o que tinha visto.

– Tem certeza que não foi um sonho? – perguntou Paloma.

– É – completou Ana Júlia. – Já que esta noite você não viu nada, né?

– Não foi um sonho – afirmou Pedro. – Tenho certeza que eu vi o Curupira. E a Vó Alda também viu, eu acho.

– Bom, mas mesmo que seja verdade. Não tem motivo pra ficar com medo. Lembra do que a Vó Alda disse? Que ele só castiga as pessoas ruins?

– Então, não tem por que ficar assim. Ninguém aqui faz mal pra natureza.

Antes que Pedro respondesse, Letícia entrou na sala parecendo um pé de vento:

– O Daniel tá por aqui?

FIM DA PARTE TRÊS

[1] A menos que você use certos tipos de substâncias em sua maioria ilícitas. Ou tenha um filho recém-nascido.

[2] É por essa razão que nunca se viu nenhum outro pássaro querer brincar de esconde-esconde com um bem-te-vi.

Comentários em: "Contos do Baquara: O Sucessor, parte 3" (2)

  1. Senhor Pingas disse:

    Pingas

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