A mitologia brasileira como você (quase) nunca viu. Provavelmente.

Fala galera! Ficamos sem atualização nos últimos dias devido à Semana Santa e tal, mas estamos aqui novamente com a segunda parte deste conto. Caso queiram (re)ler a primeira, cliquem aqui. Não deixem de comentar o que estão achando dele! Sem mais delongas, vamos à história!

À noitinha, enquanto as mulheres lavavam a louça do jantar, Vó Alda alimentava os animais. Após se certificar que eles estavam em segurança, acendeu um velho lampião[1] e chamou as crianças para a sala. Todos se sentaram – nos sofás, no chão, onde houvesse um lugar, menos na cadeira de balanço de Vó Alda.

Após um minuto de silêncio, quebrado apenas pelo barulho do vento, a velha senhora começou:

– Esta história aconteceu com o meu avô. Ele sempre costumava me contá ela quando eu era pequena.

“Uma vez, ele entrou na mata a fim de caçar uma onça que tava rondando o acampamento cigano deles. Naquela época tinha bastante onça pela região, hoje já quase num se vê. Já tinham visto a danada umas três vez. Ele saiu de manhã cedinho, prometendo que só ia vortá pro acampamento com o couro da onça na mão. E lá foi ele, atrás da bicha.

“Num demorou pra ele achá o rastro da onça. Fresquinho. Ela tinha acabado de passá por ali. Foi seguindo o rastro. Seguindo. Seguindo. Mas num conseguia incontrar a danada! Começou a ficar com fome quando percebeu que já era quase meio-dia.

“Aquilo deixou ele doido! Como era possível?  O rastro tava fresquinho, a onça num podia tá longe dali, mas ele num a encontrava! Fez uma pausa pra descansá e comer alguma coisa, despois continuou.

“Mas por mais que procurasse, num conseguia encontrá a maldita da onça! Foi aí que, perto dum toco de árvore, meu avô viu uns resto de frutas e percebeu que aquele era o mesmo lugar onde ele tinha parado pra almoçá. O coitado tinha andado em círculo a tarde inteira!

“Nisso já principiava a escurecer. Meu avô começô a se desesperar, porque ele sabia que aquilo só podia sê obra de uma pessoa. Ele nem seguia mais o rastro da onça, só queria saí da mata de qualquer jeito. Foi quando ele viu… o ser.”

Um providencial trovão ribombou no céu, fazendo as crianças se encolherem. Os pais, por sua vez – embora já tivessem ouvido aquela história antes – escutavam atentos, como se fosse algo inédito.

– Empoleirado no alto duma árvore – continuou Vó Alda – tinha um moleque, com a pele verde, peludo, com os cabelo vermelho cor de fogo. Ele olhava pro meu avô com uns zóio assim, maligno. Como se tivesse com raiva do homem. Mas o mais assustador era os pé do moleque: eles era invertido. Virado pra trás.

"O Curupira", arte de Marcelo de Souza

“O meu avô já tinha ouvido as história, sabia quem era aquele moleque. Já vinha disconfiando que ele taria envolvido. O Curupira devia de tá ali porque ele tava caçando a onça. Ele tinha feito meu avô se perder na mata, imitando os rastro da danada. Porque o Curupira faz isso: ele engana os caçador, faz eles pensar que tão seguindo o rastro de algum animal, e eles num percebe que tão entrando cada vez mais na floresta. E então, quando eles já tão totalmente perdido, o Curupira ataca!

“Meu avô foi esperto. Ele nem pensou duas vez: mirou bem onde tava o ser e puxou o gatilho da espingarda. BAM! O Curupira caiu no chão, bem atrás dum matagal. Meu avô foi se aproximando, com cuidado, mas pra surpresa dele num tinha nenhum corpo. Num tinha nada ali no chão. Em cima da árvore, onde o diabo tava, também nada.

“Quando meu avô me contava isso, chegava a ficar todo arrepiado. As vista dele começou a rodar, ficar turva. Quando voltaram ao normal, viu que tava na entrada duma gruta. E de drento dela, saiu a onça. Ele já ia atirar nela, quando percebeu que tava sem a arma. Tentô fugir, mas era como se os pés tivessem presos. E a onça avançando na direção dele. Tudo o que ele conseguiu fazer foi ajoelhar e rezar. E foi daí que a onça se sentou. Bem de frente com ele. Despois, logo atrás da onça, saiu da gruta uma outra oncinha, fiotinho ainda. E despois mais outra. E mais outra. Três fiote de onça. Levantando os zóio, ele viu o curupira, vivinho da silva, oiando pra ele. Na hora meu avô se deu conta: sem saber, o grupo tinha armado acampamento perto de uma onça que tava de cria. Num era ela que andava rondando o acampamento, era eles que tinham ido perturbar a coitada. E o Curupira, em vez de matá ele, tinha lhe dado uma chance. Mostrado pra ele por que a onça tava ali por perto.

“Meu avô ficou encarando o Curupira, compreendendo o que ele tinha feito. De repente a tontura começou a voltá. Quando acordou de novo, tava na saída da floresta, perto do acampamento. Pra surpresa dele, não tinham passado três hora desde que tinha saído pra caçar a onça.

“Naquele mesmo dia, o grupo levantou acampamento e foi embora. Nunca mais o meu avô se encontrou com o Curupira. Mas de vez em quando, quando ele tava na mata e vinha tempestade, ele ouvia o ser andando de um lado pro outro, batendo nos tronco das árvore. Ele faz isso pra ver se elas tão firme e pode resistir ao temporal. Se percebe que elas pode cair, avisa os animal pra ficarem longe.”

– E é por isso – concluiu Vó Alda, sob os olhares brilhantes das crianças – que eu disse que ele ia ter trabaio esta noite.

– Que massa! – exclamou Pedro. – Eu quero conhecer esse tal curupira, vó!

– Ai, eu não – retrucou Ana Júlia. – Eu fiquei com medo.

Vó Alda sorriu.

– Ocê não precisa de tê medo dele, não, fia. O Curupira só ataca quem faz mal pros animal sem precisão.

– E depois – disse Daniel – é só uma lenda. Como o Pé Grande. Não existe de verdade.

Se olhares tivessem peso, o rapaz teria ficado soterrado sob umas cinco toneladas.  Naquele momento, todos se voltaram para ele. A única que não apresentava um único traço de repreensão no olhar era Vó Alda, que em vez disso sorria suavemente.

– Só porque ocê nunca viu – disse a velha – num quer dizer que não existe. Meu avô podia ter lá seus defeitos, mais nunca deixou faltá comida drento de casa. E num era nenhum mentiroso.

A única coisa capaz de cortar a tensão daquele momento seria uma arma luminosa de uma galáxia muito, muito distante.

– Desculpe – murmurou Daniel. – Não quis ofender.

– Num ofendeu – respondeu Vó Alda.

As primeiras gotas da chuva, que até então hesitava em cair, foram ouvidas no telhado. Não demorou para que outras, sentindo-se mais encorajadas, as seguissem, e logo a chuva evoluiu para uma tempestade.[2] Exatamente como Esmeralda tinha previsto. A velha levantou-se, e dirigindo-se ao seu quarto, disse:

– Num esqueçam de apagar o lampião quando forem dormir. Boa noite.

 ***

Os adultos foram para o quarto de hóspedes. As crianças, junto com Letícia e Daniel, dormiram em colchões na sala.

Exceto Pedro, que não conseguiu pegar no sono. Continuava pensando na história do Curupira. Seria verdade? Seus pais e tios contavam muitos “causos” macabros que aconteceram naquele sítio, na época deles. Apesar de pequeno, não era de se impressionar facilmente. Mesmo assim…

Levantou-se. A tempestade continuava. Foi até a cozinha pegar um copo de água. Enquanto tateava no escuro, pensou ouvir barulho de passos na varanda da casa. Parou.

A cozinha era o único cômodo com janelas de vidro. Havia umas poucas telhas de vidro também, mas estavam tão sujas que qualquer um diria que eram de barro maciço. Um relâmpago iluminou o lugar.

Os passos pararam, fazendo-no lembrar de que ainda estava com sede. “Deve ter sido impressão”, pensou. Pegou uma caneca pendurada na parede, encheu de água do filtro e bebeu. Voltou para a sala. Ao se deitar, o barulho dos passos voltou. Decidiu dar uma espiada por baixo da porta. A escuridão era total, mas dali ele podia ouvir nitidamente alguém andando de um lado para o outro da varanda. Um segundo relâmpago iluminou o sítio de Vó Alda, permitindo ao garoto enxergar, ainda que por poucos segundos.

Se Pedro já estava sem sono antes, os dois pés humanos, descalços, que ele teve a nítida impressão de estarem andando pra trás, o fizeram perder completamente a vontade de pregar os olhos.

FIM DA PARTE DOIS

[1] Não que não tivesse luz elétrica no sítio, mas Vó Alda era uma senhora bastante apegada às coisas tradicionais. Sempre que possível, preferia a luz natural do fogo à luz artificial das lâmpadas elétricas – segundo ela, não havia razão para macular a escuridão e tranquilidade da noite com trabalhos desnecessários e próprios do período do dia. Alguns achavam que era o fato de a luz trêmula do lampião ajudar a criar um clima de terror para suas histórias, mas isso Vó Alda nunca tinha reparado.

[2] “É notável a semelhança desse comportamento das gotas de chuva com o de alguns grupos humanos”, diz o filósofo e meteorologista francês Antoine d’Arorgeneau, em um artigo republicado pelo colunista espanhol José María Vayaconotras.

Comentários em: "Contos do Baquara: O Sucessor, parte 2" (1)

  1. […] Lembrando também que se você perdeu as primeiras duas partes, pode conferi-las clicando aqui e aqui! […]

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