A mitologia brasileira como você (quase) nunca viu. Provavelmente.

Daê galera! Voltamos com mais um Conto do Baquara! Vocês estavam ansiosos por isso, não estavam? Hein? É, eu sei que estavam! Então não vou falar muito. Apenas quero deixar aqui um agradecimento a meus pais, que me proporcionaram a oportunidade de, na infância, conhecer os lugares que serviram de inspiração para o sítio de Vó Alda. A propriedade de seus amigos e compadres (hoje, infelizmente, inacessível a nós desde que eles se mudaram para a cidade) não era exatamente um Pica-Pau Amarelo, mas na imaginação de uma criança (que gosta de se imaginar como uma das últimas que teve a oportunidade de crescer em contato com esses ambientes), foi o suficiente. Obrigado!

E agora, sem mais delongas… vamos ao Conto!

Há certas coisas na vida que podem ser explicadas com a maior quantidade de detalhes e ainda assim nós jamais poderemos imaginá-las como realmente são. Uma delas é o amanhecer no campo.[1]

Não adianta falar sobre o absoluto silêncio que precede a alvorada, o qual nem mesmo os menores ruídos dos insetos ou da brisa ousam quebrar. Inútil mencionar a maneira como as estrelas começam a se apagar uma por uma, tímidas, para dar lugar à luz do sol. Mais inútil ainda tentar descrever as cores que parecem envolver o mundo nesse momento solene, em que o astro-rei avança, lentamente, cobrindo tudo com seus raios de luz, calor e – por que não? – som: enquanto avançam, ouvem-se os primeiros ruídos do novo dia. Começa com o pequeno murmúrio das águas do ribeirão correndo entre as pedras, ao qual logo se junta o assovio do vento passando entre as árvores da floresta virgem. Mas esses sons logo são abafados pela algazarra dos passarinhos, numa verdadeira sinfonia – totalmente desafinada e, ainda assim, mais bela do que qualquer orquestra do mundo. Sem dúvida, o alvorecer é algo indescritível, que todos deveriam testemunhar pelo menos uma vez na vida.

Aos oitenta e sete anos, dona Esmeralda já tinha testemunhado mais alvoreceres do que podia contar, mas isso em nada diminuía a beleza do espetáculo para ela. A velha descendente de ciganos, que herdara da bisavó o nome da pedra preciosa, coava uma garrafa de café na pia enquanto, no fogão a lenha, o leite, recém-tirado da vaca, era fervido. Vó Alda – como era conhecida – observava na parede o retrato do marido, morto já havia tanto tempo, mas cuja lembrança dos dias felizes que passaram juntos o mantinha vivo na memória.

A casa de Vó Alda era simples. Dois quartos, uma pequena cozinha e a sala de estar onde não havia televisão, apenas um velho rádio. Não importava o quanto lhe dissessem, a velha tinha orgulho de nunca na vida ter precisado de óculos, e jamais deixaria de acreditar que as imagens de luz em movimento acabariam com “as vistas”. Em vez de despensa, um galpão no quintal onde guardava os mantimentos. Do outro lado, o banheiro – tudo, tudo de madeira.

O sítio não era grande. Tinha apenas um pomar com frutas variadas, um chiqueiro com três ou quatro porcos e um galinheiro, embora na maior parte do tempo suas habitantes ficassem ciscando pelo quintal. Havia também um estábulo onde viviam uma vaca leiteira e alguns cavalos, os quais eram a maior alegria dos netos nas férias.

Amanhecer na Fazenda, pintura de Robson Neves

Amanhecer na Fazenda, pintura de Robson Neves

Vó Alda sorriu lembrando-se dos netos. Bem, na verdade os que gostavam de montar a cavalo, os menores, eram os bisnetos. Mas para ela era tudo a mesma coisa. Todos os anos, naquela época, a rotina do sítio era quebrada pela visita dos familiares. E logo, logo eles chegariam para passar as férias novamente com ela. Sentada num banco de madeira na varanda, entre um e outro gole de café com leite, perdeu-se em divagações e lembranças e acabou esquecendo do tempo. Quando deu por si, eram mais de sete horas da manhã – hora de começar o serviço.

Apesar da idade, Vó Alda era uma mulher ativa. Sua energia e disposição para o trabalho deixavam muitos jovens pra trás. O que não era difícil, já que, segundo ela, “esses moço de hoje só quer ficar vagabundando por aí, não querem nem saber de trabaiá”. Tinha uma saúde de ferro: até resfriados raramente a incomodavam. Algumas pessoas acreditavam que toda essa vitalidade tinha alguma fonte mágica: corriam boatos de que Vó Alda era, na verdade, uma bruxa. De fato, as mães sempre recorriam à velha quando seus filhos adoeciam, a fim de conseguir uma receita de ervas ou uma reza que lhes devolvesse a saúde. E até onde era sabido, nunca se ouvira falar de alguém que não melhorasse ao seguir os conselhos da anciã.

Às dez e meia, tudo estava pronto: os animais tratados, a casa limpa, a mesa posta, o quarto de hóspedes arrumado e o almoço encaminhado. Só faltava esperar.

Meia hora depois, ouviu o ruído do motor. No silêncio e tranquilidade do sítio, parecia um trovão contínuo. Afinal, os dois carros apareceram na curva da estrada. Agora, ao motor se juntavam gritinhos e gargalhadas de felicidade. Mais uma vez, Vó Alda sorriu.

***

Paloma foi a primeira a descer do carro, seguida de perto por Pedro. Do outro carro, mais atrás, vinha Ana Júlia. As três crianças correram para os braços abertos de Vó Alda, quase derrubando-a no processo.

– Crianças, devagar! – gritou André, pai de Pedro e Paloma. – Assim vocês quebram a vó!

– Num seje bobo, André – disse Vó Alda. – As criança cresceram, mais elas num pode comigo, não. Ainda! Tudo bem, fio?

– Tudo ótimo, vó – respondeu André, abraçando a velha. – A sua bênção.

– Deus te abençoe! E ocê, fia? – perguntou, dirigindo-se a Beatriz, esposa de André, que vinha logo atrás.

– Também estou bem, vovó, obrigada. Só uma dor de cabeça nos últimos dias…

– Ai, num se preocupe não, que logo logo passa. Isso aí é nervosismo, é pressão da vida na cidade. Garanto a ocê que aminhã memo tá novinha em foia!

O resto dos ocupantes do segundo carro chegou. Eram Verônica, irmã de André, também neta de Esmeralda, o marido, Jorge, e a filha mais velha, Letícia. Junto com ela havia um rapaz que Vó Alda não conhecia.

– Este é o Daniel, meu namorado – apresentou a menina.

– Mais óia só pra isso! Parece que foi ontem memo que eu ajudava tua mãe a te trocar as fraldas! Mais vamo entrando, vamo entrando, que eu já vô prepará o armoço!

***

A cozinha era pequena, então todos foram almoçar na varanda da casa. Vó Alda preparou uma panela de frango caipira ao molho que não durou cinco minutos em cima da mesa. A refeição foi entrecortada de conversas sobre a cidade grande, a saúde dos parentes, e uma ou outra memória da infância de Verônica e André. Mais de uma vez a velha mencionou como Letícia havia se tornado “uma moçona” com seus dezesseis anos, e como os pequenos também não seriam mais tão pequenos por muito tempo – Ana Júlia e Paloma estavam com dez anos, Pedro com sete.

Logo após o almoço, enquanto os adultos levavam as malas pra dentro de casa, as crianças, acompanhadas de Letícia e Daniel, foram para o estábulo. Estavam doidas para rever os cavalos.

– Ei, Alazão, lembra de mim? – perguntou Pedro, aproximando-se de um dos animais.

Enquanto os três pequenos se distraíam, Letícia perguntou:

– E aí, o que achou do lugar?

– It’s awesome! – respondeu Daniel. Letícia sorriu. O namorado, embora vivesse no Brasil há anos, era norte-americano de nascimento. E quando começava a falar inglês, era um sinal de que estava genuinamente impressionado. – Me faz lembrar de casa. Será que tem muito bicho nessa mata aí?

– Ah, deve ter, né? Quando eu era pequena, de vez em quando aparecia um macaco no quintal, ou um lagarto… teve uma vez que apareceu até uma jaguatirica!

– Sério?

– Sim. Todo mundo saiu correndo de susto!

– Wow… Isso vai ser divertido!

Letícia olhou séria para o namorado.

– Dan… você realmente está pensando nisso?

– Ué… e pra que você acha que eu trouxe a arma?

– Sei lá… eu pensei que fosse pra… matar alguma pombinha ou coisa assim… mas você vai mesmo querer caçar?

– O que tem de mais? Eu cresci acompanhando meu pai em caçadas quando morávamos nos Estados Unidos. Não se preocupa, eu só vou matar a saudade… e talvez uma capivara.

Ouviu-se um gritinho, seguido de algumas gargalhadas.

– O que foi?

– Nada, não – respondeu Ana Júlia, saindo do estábulo com os outros dois. – O Alazão espirrou na cara do Pedro.

– Não espirrou, não! – protestou o pequeno.

– Bom – disse Letícia – vamos lá pra casa descansar um pouco então, que agora tá muito quente pra gente ficar aqui fora.

***

O resto do dia correu normalmente. Lá pelas cinco da tarde, começaram a surgir algumas nuvens escuras no horizonte. André observou aquilo.

– Bem que a previsão do tempo disse que ia vir chuva esta hoje.

– Não só chuva – comentou Vó Alda. – Isso aí tá mais pra temporal. Parece que arguém vai tê trabaio esta noite.

– Hã? De quem a senhora está falando, Vó? – perguntou Paloma, se aproximando.

– Do Curupira, uai. – E diante do olhar atônito da garota, continuou: – Eu nunca contei essa história procês, não?

As crianças balançaram a cabeça negativamente.

– Então esperem que logo mais à noite ocês vão conhecer ela.

FIM DA PARTE 1

[1] Outros exemplos incluem a metamorfose dos insetos, a extinção dos dinossauros e o funcionamento da mente feminina.

Comentários em: "Contos do Baquara: O Sucessor, parte 1" (2)

  1. […] estamos aqui novamente com a segunda parte deste conto. Caso queiram (re)ler a primeira, cliquem aqui. Não deixem de comentar o que estão achando dele! Sem mais delongas, vamos à […]

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  2. […] também que se você perdeu as primeiras duas partes, pode conferi-las clicando aqui e […]

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