A mitologia brasileira como você (quase) nunca viu. Provavelmente.

Com algumas horas de atraso (maldito remédio pra tontura que me deixa com mais sono que as aulas de Matemática do colégio!), trazemos hoje a terceira parte do conto. Estejam preparados porque semana que vem teremos a incrível conclusão! E não se esqueçam: compartilhem e mostrem aos amigos!

Demorou alguns dias, mas finalmente surgiu uma oportunidade para investigar o caso. Mateus quis acompanhar Davi até a cidade, enquanto Roberta e Alícia faziam uma visita a um sítio vizinho. Juliana ficou imaginando como os pais não hesitaram em deixá-la sozinha, já que na cidade ela precisava de duas a três horas para convencê-los de que já estava madura o suficiente para sair com os amigos à noite.

Tão logo a garota se viu livre, correu para o estábulo – que atualmente servia apenas para a vaca Bezerra. Mas não encontrou nenhuma pista sobre o sa.. isto é, o diabinho. A mesma coisa no pasto. Assim, ficou andando pelo quintal, próxima ao terreiro. Tempos atrás ele fora usado para a secagem do café, mas atualmente estava em desuso.

“Talvez se eu tentar chamá-lo…” pensou a garota, lembrando-se do que o tio dissera na caminhonete, dias antes, sobre nunca mencionar o nome da criatura em voz alta. “Algumas pessoas acham que esse tipo de coisa pode ser atraída se nós falarmos o nome delas.” Resolveu tentar.

– Saci? Saci, você está por aqui?

Ficou em silêncio para ver se obtinha resposta. Nada. Chamou mais uma vez, e depois mais outra. O único barulho vinha de um solitário pássaro, empoleirado num galho de ipê-roxo próximo. Juliana começou a prestar atenção ao canto da ave. Compunha-se de apenas duas notas, repetidas em intervalos regulares. A garota ficou ouvindo por algum tempo. De repente, como num estalo, percebeu que aquelas duas notas pareciam repetir incessantemente: “sa-ci”, “sa-ci”, “sa-ci”…

Juliana sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Agora que tinha percebido, a impressão estava bastante nítida: o pássaro claramente repetia o nome da entidade que assombrava o sítio de seus tios.

O vento começou a soprar, fazendo as folhas do ipê-roxo balançarem. Foi ficando mais forte; agora começava a levantar terra e folhas secas do chão. Juliana tapou os olhos para se proteger da poeira. Quando diminuiu, percebeu que o canto do pássaro tinha parado. Mas imediatamente foi substituído por uma sonora gargalhada.

Juli virou-se, assustada, e deu de cara com a criatura. Basicamente, o Saci tinha a mesma aparência das ilustrações dos livros infantis: era um garoto preto como carvão, com cerca de um metro de altura e uma única perna. Além da famosa carapuça vermelha, usava apenas uma sunga da mesma cor. Tinha os olhos grandes e redondos, as palmas das mãos furadas e levava um cachimbo na boca. Enquanto ria, mostrava os dentes brancos, perfeitamente alinhados.

– Que foi? – perguntou o moleque com sua voz estridente – Que cara é essa? Nunca viu um saci, não?

E desandou a rir novamente. Juli se irritou com a cara-de-pau daquele ser.

– Por que você fica atazanando a minha família? – disparou.

– Ué, eu sou um saci! Eu vivo pra isso! Atazanar as pessoas é o meu trabalho[1], dã.

– Mas por que logo eles? Já não basta o que você fez com o meu pai anos atrás?

– Seu pai? Do que você tá falando?

– Não tente me enganar! Meu pai morava aqui antes de se casar com a minha mãe. Quando ele era pequeno, você matou o cavalo dele, junto com todos os outros cavalos do sítio! E isso depois de se fazer de amigo dele, seu… seu…

– Epa, epa, epa! Pausa. Tempo. Você pegou o saci errado, colega. Eu só cheguei aqui há poucos meses! Nunca tinha estado por estas bandas antes. Estou inocente!

– Está me achando com cara de tonta ou o quê? Meus tios me contaram tudo, tudo o que você fez naquela noite!

E Juli repetiu a história que Davi lhe tinha contado. Pela primeira vez, o Saci ficou sério.

– Tá – disse o moleque. – Em primeiro lugar, eu já falei que cheguei aqui há poucos meses. Conheço seus tios de vista, mas não sei quem é seu pai, nem seu compadre. Segundo: sacis não matam animais. Humanos, talvez, se eles nos contrariarem, mas animais? Não, isso não é da nossa natureza. De qualquer forma, vou ter de levar o caso ao Conselho dos Sacis.

– Existe um Conselho dos Sacis? – perguntou a garota, arregalando os olhos.

– Na verdade não – respondeu o pestinha, soltando mais uma gargalhada. – Mas agora falando sério: se isso realmente aconteceu, não foi um de nós. Não é o nosso mó do zoperande.

– Você quer dizer modus operandi.

– Tanto faz. Se não estivesse escrito, você nem teria notado a diferença. O importante é que nós não agimos assim. Foi alguma outra criatura. Um lobisomem, talvez.

– Mas eu não…

– Psiu – fez o Saci, levando o dedo à boca. – Eu sei o que estou dizendo. E vou investigar essa história porque agora fiquei curioso. Os únicos que podem aprontar e sair por aí pondo a culpa nos outros somos nós mesmos! Quando descobrir alguma coisa, eu te aviso. Tchau!

E antes que Juliana pudesse dizer mais alguma coisa, a poeira começou a girar em torno do Saci, formando um redemoinho. Protegendo os olhos, a garota não viu quando ele começou a se mover em direção à mata. A única coisa que restou foi um leve, porém inconfundível odor de enxofre.

Davi e Mateus voltaram da cidade ao anoitecer. Roberta terminava de preparar o jantar quando ouviu o barulho da caminhonete chegando. E ouviu outra coisa, também: o marido e o cunhado estavam discutindo.

– Berta – disse Mateus, entrando apressadamente pela porta da cozinha – onde você guarda aquela peneira de cruzeta?

Davi entrou logo atrás, não dando tempo para a esposa responder.

– Você não vai atrás dele, Mateus! De jeito nenhum!

– Você não se meta nos meus assuntos, seu… traíra!

– Eu só tava tentando te proteger!

– Eu não preciso de proteção!

Alícia e Juliana correram para ver o que era toda aquela gritaria.

– O que é que está acontecendo? – perguntou a mulher.

– Esse traíra – respondeu Mateus, apontando para o irmão – achou que eu não devia saber que aquele diabinho que matou o Silver voltou pra cidade. E vocês ainda concordaram com ele!

As três olharam para Davi, que tentou explicar:

– Aquele intrometido do Nico falou que o peste tinha aparecido na casa dele. Eu não tive escolha a não ser contar tudo pro Mateus.

– Amor, por favor… – disse Alícia. Mas foi ignorada pelo marido, que sem nenhuma cerimônia puxou a cortina que tapava o balcão da pia e encontrou o que procurava: uma peneira de cruzeta. E já ia deixando a casa, quando Davi o segurou pelo ombro.

– Você não vai fazer isso, Mateus. Eu não vou deixar.

– Você não vai conseguir me impedir, Davi. E pare de fingir que se preocupa comigo!

O soco que o irmão mais velho recebeu foi tão forte que chegou a derrubá-lo ao chão. Roberta correu para acudir o marido, enquanto Mateus desaparecia em direção à floresta. Juliana tentou ir atrás dele, mas a mãe a segurou.

– Não, senhora! – exclamou Alícia. – Você vai ficar bem aqui!

Juli tentou argumentar, mas Davi a interrompeu:

– Sua mãe tem razão. Você fica aqui onde é seguro. Eu vou atrás do seu pai.

Roberta protestou. Mas o marido continuou irredutível:

– Ele está fora de si. Não levou uma arma pra se defender, nem mesmo uma lanterna. Logo vai escurecer, e ele não vai conseguir achar o caminho de volta. Tudo isso é culpa minha. Eu tenho que ir atrás dele.

Levantou-se rapidamente e entrou na casa. Voltou minutos depois, munido de um farolete a pilha e uma carabina.

– Se eu não voltar em duas horas… – disse ao se despedir, mas não chegou a concluir a frase. Apenas deu um beijo no rosto de Roberta e partiu.

Duas horas se passaram e nenhum sinal dos homens. Alícia não entendia por que eles demoravam tanto.

– O Mateus não podia ter ido longe quando o Davi saiu – repetia. – Eles já deviam ter se encontrado.

Roberta, por sua vez, tirou da gaveta o rosário de madeira que tinha sido trazido pelo filho, alguns anos atrás, diretamente de Roma.

Das três, Juliana era a mais aflita. Embora soubesse que não devia confiar no Saci, acreditava que ele tinha dito a verdade: nem ele, nem nenhum outro de sua espécie fora responsável pela morte dos cavalos. Aquilo ia contra tudo o que tinha aprendido sobre tais criaturas. Mas todos os demais achavam o contrário, e era por isso que seu pai e tio haviam se enfurnado na mata, à noite, e ainda não tinham voltado.

Pensou em tentar entrar em contato novamente com o pequeno ser. Mas logo desistiu da ideia, achando que a presença dele naquele momento apenas iria piorar as coisas – e mais ainda se os homens voltassem.

Mais duas horas se passaram. O relógio da cozinha marcou dez e meia. Ainda nenhum sinal dos dois irmãos. A lua cheia brilhava no céu, indiferente às aflições das mulheres.

– Pelo menos – comentou Roberta, depois de rezar todos os terços que sabia – a noite está clara. Se fosse lua nova, aí seria pior.

As outras duas, juntas na varanda da casa, não responderam.

– Juli – disse Alícia – está tarde. Você não vai dormir?

– Não tô com sono – respondeu a garota, embora esfregasse os olhos.

Roberta decidiu fazer um café. Ao menos ajudaria a espantar a sonolência.

A brisa suave que refrescava a noite começou a aumentar, trazendo um mau pressentimento para Juli.

Ouviram um mugido ao longe. Era a Bezerra. Roberta agarrou um lampião, acendeu-o e correram as três para o estábulo.

A pobre vaca estava em pânico. Não parava de se sacudir, como se estivesse possuída. Em seu pescoço, havia um par de pequenas feridas, parecidas com mordidas, pelas quais o sangue gotejava. Com muito custo, Roberta conseguiu acalmá-la enquanto Alícia a ajudava a improvisar um curativo.

Um assobio soou no terreiro. As duas mulheres não o perceberam, mas Juli, sim: era o mesmo canto do pássaro que tinha ouvido naquela tarde. Sem que a mãe e a tia a vissem, saiu do estábulo.

Lá fora não havia nada de anormal, embora o vento tivesse diminuído. A garota não se surpreendeu ao perceber no ar o já familiar odor de enxofre, nem ao ouvir a já conhecida voz estridente. Mas desta vez, a voz era apenas um sussurro.

– Ei! Psiu, menina! Aqui!

Juliana ergueu os olhos na direção da voz. O Saci estava no telhado do estábulo. Apesar da claridade da noite, quase não se via nada além dos dentes brancos e da brasa do cachimbo.

saci destelhando casa

– O que foi que você fez? – indagou a menina, baixando a voz para que as mulheres lá dentro não escutassem. – Por que atacou a Bezerra?

– Não fui eu! Escuta, você precisa acreditar em mim. Seu pai e seu tio estão em perigo!

A porta do estábulo se abriu e Alícia deu uma espiada pra fora.

– Juli? Ah, você está aqui. Não devia ficar aqui fora sozinha!

– Eu só… achei que seria melhor ir lá pra casa… pro caso do papai ou o tio Davi voltarem.

– Ah, boa ideia. Eu vou com você. Sua tia quer que eu pegue uns remédios pra ferida da Bezerra.

– Ela vai ficar bem?

– Vai, sim. A Berta disse que os ferimentos não são profundos. Só precisa limpar com água oxigenada e fazer um curativo.

Enquanto falavam, iam andando na direção da casa, iluminadas pela lua. Alícia parecia mais tranquila, mas Juli sabia que por dentro, a mãe estava a ponto de desmoronar. Olhando de relance para trás, não viu mais o Saci em cima do estábulo. De que tipo de perigo ele teria falado?

O pequeno ser só apareceu novamente quando Alícia voltou para o estábulo, levando os curativos que Roberta pedira.

– Explica pra mim – disse Juliana – uma coisa de cada vez. Primeiro, se não foi você que atacou a Bezerra, quem foi?

– Esquece isso! O Mateus e o Davi estão em perigo, você tem que ir ajudá-los!

Mas a despeito da atuação dramática do Saci, a garota parecia ter perdido todo o sentimentalismo e passado a pensar racionalmente.

– Primeiro responda a minha pergunta! Eu não confio em você. Eu sei que você é um mentiroso de profissão. E eu não vou sair daqui pra você me levar sabe-se lá pra onde só porque disse que o meu pai está…

– Olha isto – interrompeu o Saci, estendendo a mão furada com um pedaço de pano verde. Juliana reconheceu aquilo: era da camisa de Mateus.

– Onde arranjou isso? – perguntou.

– Seu pai foi atacado. Seu tio também. Eu tentei ajudar os dois, mas eles atravessaram o ribeirão. Eu não posso cruzar cursos d’água.

– Atacados por quem, pelo amor de…

– Olhe pro céu, Juliana – disse o duendezinho, e sua expressão era uma raramente vista em sacis: medo. – É lua cheia. Eles foram atacados por um lobisomem!

lobisomem_thumb

As palavras do Saci deixaram Juli em choque por alguns instantes. Um lobisomem! De todas as criaturas fantásticas que conhecia[2], essa era provavelmente a que mais lhe povoara os pesadelos na infância. Mesmo depois de tantos anos, ainda sentia calafrios ao pensar no monstro cujos ataques, embora limitados às noites de lua cheia, eram violentos o bastante para deixar sequelas que duravam anos. E agora, esse mesmo monstro havia atacado seu pai – talvez Mateus até estivesse morto! Deixando de lado todas as precauções, fez o que qualquer um faria: gritou.

Alícia correu em socorro da filha, sem notar o pequeno menino negro a seu lado. Quando o percebeu, e percebeu o que ele era, fez o que qualquer um faria: gritou mais ainda.

Rapidamente, Juliana explicou à mãe tudo o que acontecera. A mulher ficou em dúvida. Afinal, nunca acreditara em sacis; mas vendo um ali, bem na sua frente, tudo o que sabia sobre eles passava a ser verdade – inclusive o fato de que não se devia acreditar em sacis.

Nisso, Roberta apareceu. Tinha ouvido o grito de Juli, mas precisava terminar o curativo na Bezerra. Quando viu o Saci, quase desmaiou de susto, mas antes que pudesse esconjurá-lo dali, Alícia lhe explicou a situação.

– Mas de jeito nenhum que eu vou confiar nesse coisinha-ruim – disse ela, como que escandalizada.

– Mas tia, veja isto! – falou Juli, estendendo o pedaço da camisa rasgada de Mateus.

– Isso aí é truque – insistia a mulher. – Eu não confio em saci, mas nem por decreto! E depois, eu vivi por aqui a minha vida inteira e nunca ouvi falar de lobisomem rondando a região! Isso só pode ser invenção desse… desse…

Antes que pudesse pensar num xingamento adequado, um barulho vindo do meio da mata lhe congelou a espinha. Um uivo longo e agudo, como o lamento de alguém que estivesse passando por um terrível sofrimento. Vários segundos se passaram, nos quais todos ficaram absolutamente paralisados.

– Creio em Deus Pai! – gritou Roberta, passado o estupor – Não fiquem aí paradas, a gente precisa ir ajudar os homens!

[1] Embora não seja um trabalho remunerado, a maioria dos sacis acaba se tornando muito boa no que faz. Vários até mesmo expandem seus horizontes para além das fronteiras das florestas e passam a atuar nas cidades – o que explica o aumento considerável, nos últimos tempos, de funkeiros, trolls de internet e ativistas políticos (estes últimos, especialmente notáveis por manterem o vermelho da carapuça e enganarem os mais desavisados).

[2] Não que literalmente conhecesse muitas criaturas lendárias. Além do próprio Saci, o único ser razoavelmente mítico com que já se encontrara tinha sido o ex-prefeito de sua cidade – um político que nunca fora acusado de um único caso de corrupção.

Deixe um comentário