A mitologia brasileira como você (quase) nunca viu. Provavelmente.

Boas, galera! Trazemos hoje a segunda parte de nossa homenagem ao mês do saci. Esperamos que gostem, e nunca se esqueçam: compartilhem com os amigos!

Nos dias seguintes, nada de anormal aconteceu. Juli encontrou o carregador do celular exatamente onde pensava tê-lo deixado: dentro da mochila. Não servia pra falar com as amigas, pois ainda não captava o sinal da operadora, mas pelo menos podia treinar suas habilidade no jogo de xadrez, o que também ajudava a passar o tempo.

A garota tinha até esquecido da conversa com o tio quando, deitada na cama e prestes a dar um xeque-mate na inteligência artificial, foi surpreendida com um grito vindo da cozinha. Levantou-se com um salto e, correndo até lá, encontrou Roberta sentada no chão, com os olhos arregalados.

– O que foi, tia? – perguntou Juliana, agachando-se ao lado da mulher. Mas em vez de responder, a outra apenas levantou a mão trêmula para apontar umas cascas de ovo jogadas à frente.

Juli aproximou-se para examinar melhor as cascas, quando Alícia entrou correndo. Do pomar, onde tinha ido colher frutas para mais tarde, ouviu o grito de Roberta, e veio o mais rápido possível.

– Que aconteceu? – perguntou.

– Não sei – Juli respondeu. – Eu ouvi o grito da tia Berta, e quando cheguei ela estava assim.

Alícia tentou acalmar Roberta, sem muito sucesso. Olhando para a mesa, viu uma tigela ao lado de um pacote de farinha, junto com outros utensílios. Depois, olhou para o chão e viu as cascas que Juli ainda examinava.

– Acho que entendi – disse. – Sua tia provavelmente estava fazendo um bolo, ou algo assim, quando alguma coisa a assustou e a fez derrubar um ovo. Talvez tenha sido um rato, ou alguma barata na farinha…

Juli levantou-se e olhou para a tia. Com um copo de água que Alícia lhe dera, já estava mais calma, mas ainda parecia alheia às demais. Depois olhou para a tigela. Não havia nada dentro.

– Eu não acho que tenha sido algum animal na farinha, mãe… – balbuciou.

– Por que não?

– Só as cascas dos ovos estão aqui. Onde foram parar a clara e as gemas?

Alícia não respondeu. Realmente, não havia nem sinal dos conteúdos dos ovos por ali. Apenas as cascas, secas como São Paulo.

– Bem… – murmurou – então talvez tenha sido algum bicho que roubou os ovos e veio até aqui… sua tia o assustou e…

– Que tipo de animal carrega as cascas dos ovos que come, mãe? – interrompeu a garota. – Até onde eu sei, lagartos não fazem isso, e mesmo se fosse um deles, duvido que a tia Berta teria se assustado tanto.

A mulher abriu a boca para dar mais uma teoria, mas foi interrompida pela cunhada.

– Foi ele – disse. – Foi aquele diabinho!

Com a ajuda de Alícia, Roberta conseguiu se levantar. Ainda tremendo, sentou-se numa cadeira que Juli lhe estendeu.

– Eu ia fazer um bolo – ela começou, parando de quando em quando para respirar fundo – e fui no galinheiro buscar os ovos. Escolhi três, bem bonitos, que a galinha botou ontem mesmo. Deixei eles aí em cima da mesa e fui lá no tanque lavar as mãos. Quando eu voltei… eles tinham chocado! Saíram três pintinhos de dentro dos ovos, e foram-se andando porta afora! Aí eu não aguentei! Quase desmaiei de susto!

Alícia e Juli se entreolharam. Será que a tia Roberta estava caducando? Não teria pego, sem querer, ovos já quase no ponto de chocar? Não, seria impossível. E mesmo que fosse o caso, o resto não fazia sentido. Pintos não nasciam já limpos e andando por aí.

– Alguém deve ter trocado os ovos enquanto você foi lavar as mãos – disse Alícia. – Mas… quem poderia ter feito isso?

– Eu já falei! – insistiu Roberta. – Foi ele! Aquele pequeno demônio… quase me mata do coração… Como ele ousa voltar a este lugar depois de tudo o que… oh, minha Nossa Senhora…

– Perdão – interveio Alícia – mas quem exatamente seria “ele”?

Antes que alguém pudesse responder, Davi e Mateus apareceram à porta, vindos do ribeirão. Tinham ido pescar.

– Olá – disse o mais velho, antes de perceber que alguma coisa estava errada. – Credo, gente, quem morreu?

Diante das expressões das mulheres, que não pareciam partilhar de sua brincadeira, repetiu a pergunta, mas desta vez falando sério:

– Ah, meu Deus. Quem morreu?

– Ninguém morreu não, tio – apressou-se a dizer Juliana, sorrindo. – Aconteceu… uns acidentes com os ovos.

A maneira como a garota pronunciou “uns acidentes”, enfatizando o som das letras s-a-c-i, fez com que Davi compreendesse imediatamente do que se tratava.

– Hã… Mateus – disse, empurrando o irmão pra fora – por que você não vai guardar as tralhas lá no paiol enquanto eu entro e começo a limpar os peixes, hein?

– Tudo bem, mas…

– Ótimo, ótimo. Guarde bem guardadas, hein? Hehe.

– Escuta, mas o que foi que aconteceu lá dentro?

– Nada, nada. É que… a Berta fica muito nervosa quando alguma coisa na cozinha dá errado, então… bem, digamos que você não gostaria de estar perto dela nas próximas horas. Principalmente com o cheiro de peixe que vai ficar por lá.

– Oh. Tudo bem, então.

Depois que Mateus se afastou, Davi voltou apressado para dentro de casa e Roberta contou o que acontecera.

– Não há dúvidas – o homem falou. – Só pode ser coisa daquele demônio!

– Ora, Davi – falou Alícia. – Vocês não acreditam realmente que exista o saci…

Os três levaram seus dedos indicadores às bocas, fazendo com que a mulher se calasse (mais pelo susto do que qualquer outra coisa).

– Mas afinal, tio… supondo que estejam certos e isso seja obra do sa.. digo, “desse moleque”… não acham que nós duas merecemos saber toda a história? Até porque, se é pra mentir pro meu pai…

Davi e Roberta se entreolharam. A sobrinha tinha razão.

– Quando seu pai e eu éramos crianças… nós conhecemos ele.

– O SACI?? – espantou-se Juli.

– Shh!! – fizeram os três.

– É, ele mesmo – continuou Davi. – E não só o conhecemos: ficamos amigos dele! Apesar de todos os avisos dos seus avós pra não confiarmos no coisinha-ruim.

– E o que aconteceu pra mudarem assim, tão… radicalmente?

– Vocês já perceberam – perguntou Berta – que este é o único sítio da região que não tem criação de cavalos? Bom, nem sempre foi assim.

– Anos atrás – continuou Davi – nós tínhamos muitos cavalos. Seu pai tinha um, em especial, de que ele gostava muito. Ele o chamava de Silver, por causa dos filmes do Cavaleiro Solitário, sabe? Sempre íamos cavalgar pelos campos. Nós dois a cavalo e o Sa… isto é, o diabinho acompanhando.

“Um dia, nós fomos acordados no meio da noite por uma barulheira no estábulo. Nosso pai pegou o trabuco e foi ver o que acontecia. Mamãe mandou que nós ficássemos com ela dentro de casa, mas o Mateus estava muito preocupado com o Silver. Escapou dos braços da mamãe e correu até o estábulo. Os cavalos… estavam todos mortos. Todos eles tinham as crinas cheias de nós – uma coisa que só o coisa-ruinzinha faz. E o Silver… o Silver estava seco, sem uma gota de sangue. Alguém ou alguma coisa tinha sugado todo o sangue dele. Os outros devem ter visto aquilo e morreram de susto, eu não sei. Nossos pais nunca nos contaram tudo. Mas o que eu sei é que o Mateus nunca se recuperou daquela noite.”

– Desde então – concluiu Davi – nós nunca mais criamos cavalos aqui. O capetinha sumiu, nunca mais apareceu de novo também, o que prova que foi ele o culpado. E é por isso que o seu pai não pode saber que ele voltou. Se souber, com certeza vai querer ir atrás dele, e aí… só Deus sabe o que pode acontecer.

Juli ia fazer uma pergunta, mas foi interrompida pela chegada do pai.

– Bem – disse Mateus, aparentemente sem desconfiar de nada – e aí, já terminou de limpar os peixes?

Mais tarde, após o jantar, Juli se ofereceu para ajudar a tia a lavar a louça. Na verdade, era apenas um pretexto para poder se afastar do pai e fazer a pergunta que tinha ficado entalada na garganta naquela tarde.

– Tia Roberta – disse – sobre aquilo que o tio Davi contou mais cedo…

– Hmm? O que foi?

– Como… como vocês têm certeza de que foi culpa do sac… ah, daquela criatura lá? Quer dizer, amarrar a crina dos cavalos, tudo bem, eu sei que é uma das travessuras que ele mais gosta. Mas matar os animais e ainda sugar o sangue deles? Nunca ouvi falar disso!

– Ah – disse Roberta, enquanto esfregava um prato – isso é porque o diabinho de quem te falaram é só uma versão água-com-açúcar do original. Você sabe, conforme as histórias vão passando de pai pra filho, elas começam a ficar mais longe da verdade. Mais moles, podemos dizer. Vão tirando as coisas mais pesadas pra deixar a história mais… mais…

– Politicamente correta, digamos?

– Não sei bem o que isso quer dizer, mas acho que sim. Quer um exemplo? Quando eu ia na escola, tínhamos um livro que contava a história da Cinderela. No final, quando o príncipe chegava na casa dela, as irmãs malvadas tentavam de tudo pra fazer o sapatinho de cristal servir. Chegavam a cortar os próprios dedos fora. Hoje em dia, o que cortam é essa parte da história.

– Quer dizer que o sa… a senhora sabe quem, ele realmente mata os animais?

– Não só os animais! Já ouvi casos de pessoas que se recusaram a dar um pouco de fumo pro diabinho e acabaram mortas a pauladas. Ah, se você ouvisse as histórias que o meu avô nos contava… hum! Se ele fosse vivo, provavelmente já teria sido processado!

Naquela noite, quando todos foram dormir, Juli ficou na sala. Queria continuar lendo um livro que trouxera[1]. Mas acabou não conseguindo se concentrar na leitura depois de tudo o que acontecera. Seria verdade mesmo? Havia um sa… hã… ser folclórico de uma perna só rondando o sítio, e ele tinha sido o responsável pela morte de todos os cavalos, décadas atrás? Por mais que Juliana acreditasse em coisas esotéricas, magias e poderes ocultos da natureza, aquilo parecia demais! No entanto, as evidências indicavam claramente que algo sobrenatural estava acontecendo naquele lugar. Se era um sa… isto é, um moleque negrinho de gorro vermelho, um duende brincalhão, uma assombração ou qualquer outra coisa, ela não sabia ainda. Mas que havia de descobrir, isso havia!

faceorkut

[1] Como Aproveitar as Férias com os seus Parentes Chatos sem Morrer de Tédio, de Aldo Lecente Rebel, era o mais recente fenômeno literário entre o público infanto-juvenil. Não que isso fosse grande coisa naqueles dias.

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