A mitologia brasileira como você (quase) nunca viu. Provavelmente.

Olá, pessoas! E outras criaturas! Como estão? Espero que estejam bem.

Como sabem, estamos no mês de outubro, mês do popular Halloween – ou Dia das Bruxas. Como provavelmente também sabem, no Brasil essa data também é conhecida como o Dia do Saci. Os motivos para isso não serão discutidos aqui, mas a data será celebrada de qualquer forma – ou, melhor dizendo, da melhor forma: com um conto em quatro partes sobre a figura mais querida e mais odiada de nossa mitologia! Vamos, então, à primeira parte da história. Esperamos que curtam, e não esqueçam de compartilhar com os amigos!

A voz suave da mãe fez a garota entreabrir os olhos, não sem uma gota de raiva por ter sido tirada da melhor parte do sonho.

– Juliana.

– Hmmm…?

– Vamos – disse Alícia. – Está na hora.

Juliana olhou para o relógio digital ao lado da cama.

– Estamos no meio da madrugada, mãe…

– Eu sei, e você sabe muito bem que temos que ir agora se quisermos evitar o trânsito do feriado.

Ainda esfregando os olhos, a garota pôs-se sentada na cama.

– Eu não faço tanta questão de evitar o trânsito do feriado…

– Mas eu e sei pai fazemos, então vencemos porque somos a maioria. Agora vamos, troque de roupa e tome um café antes de sairmos.

Alícia saiu do quarto. Juliana quase podia ouvir o colchão chamando por ela, dizendo para que voltasse a dormir. Mas a voz da mãe falou mais alto:

– E nem pense em voltar a dormir, entendeu?

Com um esforço que lhe renderia uma vaga em qualquer prova de atletismo, Juliana levantou-se, trocou de roupa e escovou os dentes. Depois, desceu as escadas do sobrado até a cozinha, onde o pai terminava de tomar o café.

– Bom dia, pai.

– Hmm? Ah, bom dia, Juli – respondeu Mateus, engolindo o último pedaço do pão. – Animada pra viagem?

– Ah, o senhor nem imagina – disse a garota, pegando uma xícara. O pai olhou para ela com ternura. Na verdade, imaginava muito bem o que se passava pela cabeça da filha.

O fato era que Juliana não estava nem um pouco animada para aquela viagem. Passar um mês inteiro no sítio dos tios no interior não era exatamente o plano ideal de férias de uma adolescente de 16 anos, principalmente se não houvesse mais ninguém da mesma faixa etária para dividir a dor. Eles até tinham convidado Mariana, a melhor amiga de Juli, para ir junto, mas a família dela já tinha seus próprios planos.

– Bem, termine rápido pra podermos sair – disse Mateus, levantando-se e indo para a garagem.

Em silêncio, Juliana continuou sua xícara de café com leite. Ainda não estava totalmente conformada.

Meia hora depois, a família deixava pra trás a cidade e se aventurava pela rodovia, iluminada apenas pelas estrelas e pela lua cheia – além dos faróis do carro, é claro. Alícia tinha razão: não havia mais ninguém na estrada àquela hora[1].

Juliana cochilava, encostada no banco traseiro. Quando acordou, os primeiros raios do sol começavam a iluminar o céu escuro. Tinha dormido por três horas. Reconheceu o lugar onde estavam: próximos à divisa do estado, quase na metade da viagem. Lembrou-se da infância, quando paravam no posto de gasolina que havia ali. Ela adorava brincar no pequeno playground ao lado do restaurante. Infelizmente, após a morte dos donos, o pequeno posto tinha sido abandonado. O playground estava tomado pela vegetação, e o que sobrara do restaurante tinha todas as janelas quebradas.

Alícia e Mateus conversavam. A rodovia já estava bem mais movimentada. Nos dois sentidos, carros circulavam, cheios de pessoas aproveitando o feriado prolongado para visitar suas famílias ou simplesmente conhecer lugares novos e descansar.

Finalmente, depois do que pareceu uma eternidade, chegaram ao sítio dos tios, Davi – irmão de Mateus – e Roberta. Era naquele sítio que Mateus tinha vivido toda a sua infância e adolescência, antes de se casar com Alícia e mudar para outro estado. Davi, sendo o irmão mais velho, herdara a propriedade quando os pais morreram, poucos anos antes, e desde então vivia ali com Roberta. Felipe, o único filho do casal, decidira entrar para a Marinha e às vezes aparecia para visitar.

Juliana saltou do carro e foi logo cumprimentar os tios. “Quanto mais cedo, melhor”, pensava.

– Minha nossa! – exclamou Roberta – Mas essa é a Juli? Como ela cresceu!

Juliana pensou em dizer o mesmo da tia, mas achou que não seria de bom tom – embora a mulher realmente tivesse aumentado alguns visíveis centímetros desde o ano anterior. A diferença é que tinha sido na horizontal. Os cabelos vermelhos presos num coque ressaltavam ainda mais o rosto rechonchudo. Já o tio não mudara muito – só ficara um pouco mais calvo. Fora isso, era o mesmo homem alto, com um par de costeletas fora de moda e olhos verdes sempre atentos.

– Solte a menina, Berta – disse ele – senão vai acabar sufocando a coitada. Ela não é mais uma menininha.

“Finalmente”, pensou Juli, “alguém sensato!”

– Berta! Davi! – exclamou Mateus, chegando logo atrás de Juli.

Juliana reparou na semelhança entre o pai e o tio. Apesar da diferença de quase sete anos entre os dois, ninguém poderia colocar em dúvida o fato de que eram irmãos. Mateus tinha os mesmos olhos verdes, o mesmo rosto alongado, o mesmo cabelo escuro e liso, só que em maior quantidade.

– Que bom ver vocês! – foi a vez de Alícia vir cumprimentar os parentes. Juli ficou feliz por ter puxado mais à mãe do que à família do pai. A única coisa que não herdara tinha sido o nariz (reto, igual ao de Mateus) e a boca, fina e pequena, uma característica dada pela avó. Os cabelos castanhos e cacheados, as sobrancelhas finas e os olhos parecendo duas amêndoas eram idênticos aos de Alícia.

Cumprimentos feitos e malas descarregadas, cada um foi começar a aproveitar as férias a sua maneira. Alícia e Roberta se enfiaram na cozinha para preparar o almoço, enquanto Davi mostrava a Mateus algumas melhorias que tinha feito no último ano. Por sua vez, Juliana tratou de fazer o que qualquer outra adolescente faria: procurar um lugar onde seu telefone celular recebesse sinal a fim de acessar a internet. Tentou no pomar, mas não obteve sucesso. Perto do estábulo também não. Na própria casa dos tios, nada. Já estava quase pensando em subir na velha figueira pra ver se, lá de cima, conseguia alguma coisa. Mas antes passou pelo pasto, onde a vaca Bezerra fazia sua refeição matinal. Por um instante, Juli esqueceu do celular, ao lembrar-se de quando Bezerra tinha nascido. Tivera a sorte de testemunhar o momento do parto, e posteriormente, tio Davi a convidara a ordenhar a vaca-mãe. Pela primeira vez – pelo menos, desde que abandonara o peito de Alícia – Juli tomou leite tirado na horinha, sem ferver nem nada. A memória quase a fez ficar com água na boca.

vaca

Ficou alguns minutos em silêncio, lembrando de todas as coisas que vivera naquele sítio. Primeiro, quando os avós ainda eram vivos; depois, quando os tios o assumiram. Lembrou-se das histórias, dos passeios à beira do ribeirão, das tardes chupando frutas direto do pé, das brincadeiras com o primo, Felipe…

Bezerra mugiu, trazendo a menina de volta ao presente. Não era um mugido comum: alguma coisa tinha assustado a vaca. Ela parecia estar sapateando no meio do pasto, como que ensaiando para uma apresentação na Broadway – ou tentando espantar algo que a estivesse incomodando. Mas Juliana não via nada ali.

Um vento suave começou a soprar, e pareceu acalmar o animal. Pouco depois, Bezerra parecia ter esquecido o incidente e voltou a ruminar com a maior tranquilidade.

Juliana achou aquilo muito esquisito, mas nesse momento o celular apitou. A animação que tomou conta da garota, porém, durou pouco: não era nenhuma de suas amigas ligando, apenas a bateria avisando que precisava ser recarregada.

– Mas que droga! – exclamou a garota. – Essas baterias novas não duram mais nada!

Após o almoço, Davi precisava fazer uma entrega na cidade. Juli decidiu acompanhá-lo pra ver se refrescava um pouco a cabeça. Não bastasse o celular não ter sinal algum, ainda estava com a bateria totalmente descarregada. E o pior: não tinha encontrado o carregador, embora tivesse certeza de tê-lo posto na mala.

– Vou ver se acho um telefone público que funcione – disse, ao entrar na velha caminhonete do tio.

O sítio distava cerca de dez quilômetros da cidade. No caminho, pela estrada de terra, conversavam amenidades. Davi perguntou como iam as coisas na escola (bem, obrigada), se ela já tinha escolhido uma faculdade (ainda estou em dúvida entre veterinária e educação física) e se já tinha algum namorado (essa última questão em particular quase fez com que Juli se arrependesse de ter acompanhado o tio).

– Hã… a Bezerra cresceu, não é? – disse a garota, mudando rapidamente de assunto.

– Ah, sim – respondeu Davi. – Mas ultimamente, não sei por quê, ela tem agido estranho…

– Como assim?

– Eu não sei, às vezes, do nada, ela fica agitada, corre de um lado pro outro como se estivesse fugindo de alguma coisa.

– Ela não está doente, está?

– Bom, todos os veterinários dizem que ela parece bem saudável. E eu e a sua tia já procuramos pelo pasto todo, mas não achamos nada de anormal. Só me faltava a vaca estar ficando louca!

– Agora que o senhor falou… hoje cedo ela realmente parecia estar assustada com alguma coisa. Mas depois parou, como se tivesse passado.

– É esquisito, não é? Não sei o que pode estar acontecendo. Bom, chegamos.

A conversa tinha ficado tão interessante que Juliana nem percebera o tempo passar. Davi parou o veículo em frente a um pequeno mercado, cuja frente estava cheia de caixas de madeira com verduras e frutas.

– Vai ficar aqui dentro – perguntou, abrindo a porta – ou prefere ir dar uma volta? Não vou demorar muito.

– Ah, vou ver se encontro um telefone por aí. Daqui a pouco eu volto.

O único telefone público que Juli encontrou já estava ocupado por uma mulher que não parava de falar. Quem quer que estivesse do outro lado da linha já devia estar com dor de ouvido – assim como a pobre criança, provavelmente filho da mulher, que segurava a mão da mãe.

“Não me admira que ela consiga falar tanto”, pensou a garota. “Com esse tamanho, deve dar pra armazenar bastante ar!”

Percebendo que a coisa ia demorar, Juliana resolveu voltar para a caminhonete. Encontrou o tio conversando com o dono do armazém, já tendo terminado de descarregar as hortaliças que trouxera.

– É verdade mesmo, seu Joaquim? – perguntou Davi.

– Pois eu sou capaz de jurar pro senhor, seu Davi! Não sobrou um ovo bom! Tudo choco! Isso só pode ser coisa dele! Aposto que é ele que tá assustando a Bezerra também!

– Oi – disse Juli, entrando na conversa – com licença, ouvinte boiando aqui.

– Ah – falou Davi, voltando-se para a sobrinha – Oi, Juli. Não encontrou o telefone?

– Encontrei, mas tinha uma criança com um balão de gás usando. Daí eu desisti. O balão não parava de falar. Quem é “ele”?

– Ah, este é o seu Joaquim, o dono da mercearia. A gente estava…

– Olá, muito prazer, meu nome é Juliana. Mas quando eu perguntei sobre “ele”, eu quis dizer a quem vocês estavam se referindo. A pessoa que está assustando a Bezerra.

Os dois homens se entreolharam, depois Davi disse, forçando um sorriso:

– Não é nada… nada, mesmo, Juli. Hã… podemos ir pra casa? Ou você quer fazer mais alguma coisa por aqui?

– Não… – disse a garota, um tanto desconcertada com aquela resposta – Não, podemos ir, sim.

– Bem, então… até quarta-feira, seu Joaquim! – falou Davi, entrando na caminhonete.

A volta ao sítio foi silenciosa. Juliana preferiu não tocar no assunto. Mas o sitiante achou que a sobrinha deveria saber.

– Juli – disse. Fez uma pausa. Não sabia como falar sobre aquilo, mas agora que tinha começado, precisava ir até o fim. – Se eu te contar uma coisa, você promete não falar disso pra ninguém? Principalmente pro seu pai?

A garota não respondeu. Apenas concordou com a cabeça.

– Bom – continuou Davi. – Desculpe não falar na frente do Joaquim, mas é que… bem, este não é o tipo de assunto a ser tratado em público.

Mais uma pausa. O homem parecia estar escolhendo as palavras.

– Existe uma lenda… aqui nesta região… sobre um moleque… que vive pra aprontar com todo mundo. Ele é capaz de pregar peças em qualquer pessoa, e adora ver a cara delas quando caem nos truques dele. Uma das coisas que ele gosta de fazer é assustar os animais. Mas como ele tem poderes mágicos, então nós não conseguimos vê-lo.

– O senhor está dizendo que quem anda assustando a Bezerra é um tipo de… duende? – perguntou Juli.

– É… acho que dá pra chamá-lo assim. De qualquer forma, o Joaquim jura que a pestinha esteve na casa dele e andou fazendo uma bagunça enorme por lá.

– E por que exatamente eu não posso contar isso pra ninguém? Principalmente pro meu pai? Quer dizer, é só uma lenda, não é?

– Faz anos que ninguém mais falava nesse… duende. Mas agora parece que ele voltou pra nos atazanar. E antigamente, quando nós éramos pequenos, o seu pai teve… uma experiência ruim com esse moleque. Se ele souber que o diabinho voltou… eu nem sei do que ele seria capaz.

Juliana não era boba, muito menos desconhecia as lendas da região. Ela passara boa parte da infância ali, afinal – e muito desse tempo fora preenchido com as histórias contadas pelo finado avô.

– Entendo. Só por curiosidade, tio… esse “duende” por acaso é um garoto preto, com uma perna só, que fuma cachimbo e usa um gorro vermelho? Vocês realmente estão com medo de… um saci?

Juliana não era uma garota religiosa, mas a freada que Davi deu na caminhonete foi tão brusca que ela agradeceu a Deus por ter se lembrado de pôr o cinto de segurança.

– Que foi isso? – gritou, assustada.

– Nunca mais… – balbuciou Davi, trêmulo como se repentinamente tivesse sido atingido por um balde de água gelada e imediatamente exposto ao vento frio – nunca mais… chame esse nome em voz alta.

– T-tio… o senhor tá me assustando… eu só disse…

– Prometa – interrompeu o homem. – Só… prometa que nunca mais vai falar o nome do diabinho de novo. Tá bom?

Juliana concordou, em silêncio. O mesmo silêncio que os acompanhou até chegarem ao sítio.

saci_by_amokdreams

[1] Aqui cabe uma explicação: embora seja verdade que sair mais cedo ajuda a evitar o tráfego pesado, também é verdade que se isso é algo tão óbvio, as pessoas deveriam saber e o trânsito na madrugada deveria ser tão ruim quanto no resto do dia. Felizmente para a família de Juliana, a maioria das pessoas que sabem disso ainda prefere ficar em suas camas dormindo.

Deixe um comentário